Sunday, October 28, 2007
O viajante cego
Minha coluna de terça passada na Folha de S. Paulo:
Num tempo em que o drama de viajar não era o apagão aéreo, qualquer trajeto longo poderia significar dias de dores lombares excruciantes numa carroça puxada a cavalos em terreno irregular, ou meses enjoando num navio. Além de superar essas dificuldades comuns no século 19, o inglês James Holman tinha mais motivos que qualquer um para se gabar de ter dado a volta ao mundo.
Não só por ser cego. Mas por ter completado trajetos que outros abandonaram pelo meio, e escrito com minúcias impressionantes sobre tudo o que conheceu somente através de seus outros sentidos. Escalar sozinho o monte Vesúvio - como fez em junho de 1821 - era o tipo de diversão que fazia a cabeça do cara. Como fez essas e outras sem enxergar? Sua história foi recuperada por Jason Roberts, colaborador do Village Voice e da Salon.com, em "A sense of the world" (HarperCollins).
Holman também sofria de reumatismo e amargou cerca de dois anos sendo tratado como um inválido, antes que pudesse se jogar na aventura. A medicina disponível não oferecia alternativas de cura que não passassem por sessões de sangramentos, choques e sanguessugas - tudo inútil.
As dores reumáticas foram seu passaporte: os médicos decidiram que o Mediterrâneo e certas partes da Europa tinham condições climáticas que poderiam amenizar o sofrimento físico. Com carta branca dos doutores, meteu o pé na estrada, começando pela França e engrenando viagem até ganhar fama como viajante e escritor, completando, em 1832, seu circuito mundial. .
Recusava guias mas era acompanhado às vezes por um amigo completamente surdo, Colebrook. Que ajudava a enriquecer os textos do viajante cego com detalhes visuais, e também gostava de descrever as mulheres que encontravam pelo caminho. A ajuda era bem recebida pelo viajante cego; não raro Holman acabava caindo nas graças de belas condessas e outras patricinhas high-society da época, e era hospedado por elas.
Encontrou ainda o Pedestrian Traveler, sujeito andrajoso que levava no bolso cartas de recomendação assinadas por diversas autoridades e fez a pé boa parte de seu trajeto do Velho Mundo ao Novo Mundo. Às vezes aceitava uma carona de carroça ou de canoa nas travessias que não poderiam ser feitas de outra maneira.
Por conta de um mal-entendido, Holman chegou a ser preso na Sibéria e escapou da cadeia burlando a burocracia diplomática. Entrava em regiões desconhecidas sem falar o idioma local e aprendia o básico da língua no tranco. No continente africano, cruzou com um guerreiro indígena tatuado que podia ter acabado com seu barato. A julgar pelo nome - Cut Throat ["corta-garganta"] - não tinha lá muito respeito pela vida alheia. Mas Holman possuía a manha: ganhou a amizade do aborígene, sobreviveu e seguiu emendando um programa de índio no outro. Sem vôos atrasados.
Num tempo em que o drama de viajar não era o apagão aéreo, qualquer trajeto longo poderia significar dias de dores lombares excruciantes numa carroça puxada a cavalos em terreno irregular, ou meses enjoando num navio. Além de superar essas dificuldades comuns no século 19, o inglês James Holman tinha mais motivos que qualquer um para se gabar de ter dado a volta ao mundo.
Não só por ser cego. Mas por ter completado trajetos que outros abandonaram pelo meio, e escrito com minúcias impressionantes sobre tudo o que conheceu somente através de seus outros sentidos. Escalar sozinho o monte Vesúvio - como fez em junho de 1821 - era o tipo de diversão que fazia a cabeça do cara. Como fez essas e outras sem enxergar? Sua história foi recuperada por Jason Roberts, colaborador do Village Voice e da Salon.com, em "A sense of the world" (HarperCollins).
Holman também sofria de reumatismo e amargou cerca de dois anos sendo tratado como um inválido, antes que pudesse se jogar na aventura. A medicina disponível não oferecia alternativas de cura que não passassem por sessões de sangramentos, choques e sanguessugas - tudo inútil.
As dores reumáticas foram seu passaporte: os médicos decidiram que o Mediterrâneo e certas partes da Europa tinham condições climáticas que poderiam amenizar o sofrimento físico. Com carta branca dos doutores, meteu o pé na estrada, começando pela França e engrenando viagem até ganhar fama como viajante e escritor, completando, em 1832, seu circuito mundial. .
Recusava guias mas era acompanhado às vezes por um amigo completamente surdo, Colebrook. Que ajudava a enriquecer os textos do viajante cego com detalhes visuais, e também gostava de descrever as mulheres que encontravam pelo caminho. A ajuda era bem recebida pelo viajante cego; não raro Holman acabava caindo nas graças de belas condessas e outras patricinhas high-society da época, e era hospedado por elas.
Encontrou ainda o Pedestrian Traveler, sujeito andrajoso que levava no bolso cartas de recomendação assinadas por diversas autoridades e fez a pé boa parte de seu trajeto do Velho Mundo ao Novo Mundo. Às vezes aceitava uma carona de carroça ou de canoa nas travessias que não poderiam ser feitas de outra maneira.
Por conta de um mal-entendido, Holman chegou a ser preso na Sibéria e escapou da cadeia burlando a burocracia diplomática. Entrava em regiões desconhecidas sem falar o idioma local e aprendia o básico da língua no tranco. No continente africano, cruzou com um guerreiro indígena tatuado que podia ter acabado com seu barato. A julgar pelo nome - Cut Throat ["corta-garganta"] - não tinha lá muito respeito pela vida alheia. Mas Holman possuía a manha: ganhou a amizade do aborígene, sobreviveu e seguiu emendando um programa de índio no outro. Sem vôos atrasados.
Wednesday, October 17, 2007
Lançamento hoje
Nesta quinta-feira, 18, lanço Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, às 20h, em São Paulo, na Mercearia São Pedro (ver convite abaixo). Meu desejo é que vá todo mundo. Mas se apenas a minha turma de São Paulo comparecer, fico feliz.
Tuesday, October 16, 2007
Quem
Quem (a revista), me colocou lá em sua lista de "70 pessoas que amamos". Tá em todos os salões de beleza do Catete ao Lebronx, pô. Até meu cabeleireiro hetero viu. E em semana de lançamento do livro. Perfeito. "Hype com conteúdo", escola Will Self-made-man mais popular (se bem que ele participou até de seriado de TV).
Friday, October 12, 2007
"I was pioneer", me disse Nicci, fazendo uma mímica que se parecia com alguém que bate com uma marreta contra algo. Contra um muro. Nunca mais vi Nicci. Só passei aquelas três ou quatro horas com ela numa sinuca esquecida, onde ela era a bartender, esperando brasileiros que, honrando sua fama, jamais apareceram. Nicci tinha subido no Mauer e quebrado pedaços dele quando caiu o regime e o próprio Muro. Era "pioneira", atravessara pela primeira vez de um lado a outro como toda uma geração. Seu inglês era inferior ao de seus amigos, aprendido em escola do lado leste.
Thursday, October 11, 2007
Freunds
Conheci-a na passeata comunista anti-globalização, anti-G8, e pró-turcos expulsos pelo governo de um squat em Kreuzberg. Ela era assistente social (dá pra ver porque ficou minha amiga).
No dia seguinte ao que furtaram minha bolsa numa boate no Mitte (lembram do ladrão de Damasco?), preferi ir pro zoológico. Esse cara aí saiu da água assim que viu a câmera. Berlinense é um bicho exibido.
E esses são dois dos vários passarinhos que roubavam minha comida direto do prato no Hackescher Markt. Um clássico da minha experiência com seres extra-terrestres em Berlim.
Cinza
O Memorial do Holocausto. Esta cabeça não faz parte do monumento.
Bonito e macabro: 2.711 blocos de concreto escuro de alturas diferentes, tumbas crescendo e diminuindo num labirinto na Hannah Arendt Strasse.
Monty Phyton é genial. Nunca mais conseguimos ver um cavalheiro de armadura brilhante na seção medieval de um museu sem imaginar como ele ia ao restroom.
Tuesday, October 9, 2007
Obi Wan Kenobi
Recebemos e-mail de leitor. Recebemos dois. Três. Por aí vai. Tenho colado aqui as mensagens
sobre o meu livro, como a de Paula F.
Se fosse resenha, não me convencia.
Resenhista não dança balé, como a Paula (fucei o Orkut da Paula. Paula dança balé). Resenhista lê de pé. No metrô. Ou no engarrafamento. Falando ao celular. Assim que funciona, acho. Trabalhei em jornal, deduzo daí.
Leitor... bem, leitor lê. Paula, diferentemente de outros leitores, diz ainda por cima ter me ouvido. Vamos progredindo, então, para-psicologicamente, de carta de leitor em carta de leitor.
Qualquer dia vai me chegar um e-mail informando que alguém comprou o Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, e que, ao abri-lo, me materializei em holografia a sua frente.
"Help me, Obi Wan Kenabi, you´re my only hope". Esse tipo de coisa.
(Tive um amigo que, toda vez que bebia e era solto na rua feito fera, ajoelhava-se frente à primeira caçambinha da Comlurb, dessas presas a poste, e pedia com urgência e humildade: "Help me, Obi Wan Kenobi, you´re my only hope", como se ali enxergasse o Membro do Alto Conselho Jedi de Guerra nas estrelas.)
Cecília,
te vi a primeira vez na FLIP deste ano. Ri e me emocionei com as suas palavras no palco.
Te vi pela segunda vez ainda na flip, porém entre uma multidão..
estava sozinha e observando pessoas ou alguma coisa.
te vi pela terceira vez numa livraria. li mais de suas palavras e te comprei para presentear uma amiga. (quero deixar claro q fiquei em duvida entre vc e o nobel coetzee, mas fiquei com a 1ª opção pq gosto de lugares que não conheço e de pessoas que nunca vi, apesar de ter te visto já duas vezes até então).
te vi pela 4ª vez aqui nesse novo meio de comunicação.
posso te adicionar?
beijos da sua leitora de terças feiras - Paula F.
Te add.
Monday, October 8, 2007
A Torre da TV, no Mitte (em bom português, centro ou meiúca). Sempre que eu andava por seis horas e me descobria do outro lado da cidade, incapaz de compreender como tinha chegado até ali a pé, mirava na torre distante, às vezes um naco dela, e caminhava mais seis horas de volta de olho naquele sinal. A Fernsehturm era o alvo. A recompensa era turca e apimentada. Comida que aqui não ousamos.
Um doce pra quem descobrir o que funcionava nesse lugar que só abria à noite:
1) uma casa de Go-go boys
2) uma barraquinha de cachorro quente em que a salsicha se ausentava (tipo nosso pastel de vento, hence the asinhas)
3) uma boate com lotação máxima de 15 pessoas
A entrada da minha casa em Berlim, em Kreutzberg. Uma família muçulmana guardou as minhas malas enquanto a pessoa que alugou o apartamento não aparecia (cinco horas de atraso).
Holland, 1945
Neutral Milk Hotel
The only girl I've ever loved
Was born with roses in her eyes
But then they buried her alive
One evening 1945
With just her sister at her side
And only weeks before the guns
All came and rained on everyone
Now she's a little boy in Spain
Playing pianos filled with flames
On empty rings around the sun
All sing to say my dream has come
The only girl I've ever loved
Was born with roses in her eyes
But then they buried her alive
One evening 1945
With just her sister at her side
And only weeks before the guns
All came and rained on everyone
Now she's a little boy in Spain
Playing pianos filled with flames
On empty rings around the sun
All sing to say my dream has come
PanAmericana
Aparecem pela minha casa uns bloquinhos finos, de papel branco, pautado, marca: PanAmericana. A capa estampa meio termo entre vaca malhada e dálmata. Pequenos mesmo: 100x70. Milímetros. Irresistíveis, combinam com toda sorte de vício disfarçado sob o genérico termo "pesquisa". Três livros que leio e deles anoto nos caderninhos minúsculos. A regra de utilização dos caderninhos é que cada entrada tenha no máximo cinco linhas. Se for algo muito excitante, é concedida à notação uma página INTEIRA de 100x70mm.
Minha caligrafia vem se amiudando com o treino nos caderninhos. Logo, só eu vou entender o que escrevo neles. Deve ser isso que xingam de obscurantismo infantil.
A "pesquisa" é toda codificada, como o diário de Annie Lister em inglês do século 21, o que teria sido mais difícil de decodificar caso meus bloquinhos fossem encontrados em fins de 1800 dentro das calças um tanto folgadas de Lady Lister ou sob a cama de uma de suas amantes, Marianne. Aquele marido de Marianne, vou te dizer. Annie teria mais chance - e teve. Lister não foi a primeira lésbica "moderna", talvez a primeira menine "pós pós pós" a escrever. Há quilômetros de diferença, como Berlim insiste em evidenciar, entre as duas coisas. Um dos milestones que marcam essa distância é estabelecido pelo banheiro público. Pois menine entra no banheiro público feminino. As mesmas características que podem fazer com que seja espancada no banheiro masculino podem levar com que seja expulsa do banheiro feminino pela maldade das mulheres que acham que se trata de um tipo de mulher cujo exterior não corresponde ao sexo com que nasceu. The "urinary segregation", como descreve Lacan (now I´m just messing with ya. Diga se apanhei-te, cavaco, e te direi quem és).
Dito isto, troco o diário por um romance inútil do Gore Vidal em que o fanfarrão Harold acusa o idealista Peter (esta vai pro meus bros reducionistas, yo):
- Diletante.
Delectare, deleitar. Os caderninhos. Cada nota no máximo cinco linhas.
Hic et Ille
Um espelho não tem coração, mas tem muitas idéias. (Malcolm de Chazal).
"Todo ser humano carrega consigo, vida afora, um espelho exclusivamente seu e do qual será tão difícil livrar-se quanto de sua própria sombra.
Jogo de salão para uma tarde chuvosa: imaginar os espelhos de nossos amigos. O amigo A tem um enorme espelho de pendurar em parede com uma moldura dourada e barroca; o B, um pequeno e discreto espelho de bolso, dentro de um estojo de pelica, com as iniciais gravadas no verso; sempre que olhamos para o amigo C, este está prestes a jogar fora seu espelho, mas se olharmos para dentro de seu bolso, ou mesmo para o forro das mangas de seu paletó, encontraremos outro espelho, sobressalente.
A maioria, talvez a totalidade de nossos espelhos, distorce ou não faz jus a nossa imagem, embora isso se dê em graus e formas diferentes. Alguns aumentam, outros diminuem, outros refletem imagens lúgubres, cômicas, sarcásticas ou aterrorizantes.
Mas as propriedades de nossos espelhos não são tão importantes como às vezes julgamos. Seremos avaliados não pelo tipo de espelho que possuímos, mas pelo tipo de utilização que a ele damos por nossa, riposte ao nosso reflexo." - w.h. auden, em "A mão do artista" [se me deixam citar sem brincadeiras. senão, passem ao post acima, em que brinco de citar.]
"Todo ser humano carrega consigo, vida afora, um espelho exclusivamente seu e do qual será tão difícil livrar-se quanto de sua própria sombra.
Jogo de salão para uma tarde chuvosa: imaginar os espelhos de nossos amigos. O amigo A tem um enorme espelho de pendurar em parede com uma moldura dourada e barroca; o B, um pequeno e discreto espelho de bolso, dentro de um estojo de pelica, com as iniciais gravadas no verso; sempre que olhamos para o amigo C, este está prestes a jogar fora seu espelho, mas se olharmos para dentro de seu bolso, ou mesmo para o forro das mangas de seu paletó, encontraremos outro espelho, sobressalente.
A maioria, talvez a totalidade de nossos espelhos, distorce ou não faz jus a nossa imagem, embora isso se dê em graus e formas diferentes. Alguns aumentam, outros diminuem, outros refletem imagens lúgubres, cômicas, sarcásticas ou aterrorizantes.
Mas as propriedades de nossos espelhos não são tão importantes como às vezes julgamos. Seremos avaliados não pelo tipo de espelho que possuímos, mas pelo tipo de utilização que a ele damos por nossa, riposte ao nosso reflexo." - w.h. auden, em "A mão do artista" [se me deixam citar sem brincadeiras. senão, passem ao post acima, em que brinco de citar.]
Tuesday, October 2, 2007
Um blogueiro com a cabeça no lugar
Da minha coluna na Folha desta terça:
SE A blogosfera fosse um balneário ensolarado, eu chamaria esse cara pra tomar um chope. E se o jornalista e blogueiro Hossein Derakhshan (aka Hoder) tivesse permanecido em Teerã, onde nasceu, estaria preso ou já teria, literalmente, perdido a cabeça.
Hoder tinha 27 anos e uma coluna diária sobre cultura e internet no jornal "Asr-e Azadegan" (algo como "Tempo dos Livres"), quando, em 2000, o aiatolá Khamenei mandou fechar essa e outras 16 publicações, incluindo o "Jameah" ("Sociedade"), primeiro jornal reformista iraniano. Pego de surpresa, como centenas de colegas jornalistas que ficaram desempregados da noite para o dia, mudou-se para Toronto, no Canadá. (...)
SE A blogosfera fosse um balneário ensolarado, eu chamaria esse cara pra tomar um chope. E se o jornalista e blogueiro Hossein Derakhshan (aka Hoder) tivesse permanecido em Teerã, onde nasceu, estaria preso ou já teria, literalmente, perdido a cabeça.
Hoder tinha 27 anos e uma coluna diária sobre cultura e internet no jornal "Asr-e Azadegan" (algo como "Tempo dos Livres"), quando, em 2000, o aiatolá Khamenei mandou fechar essa e outras 16 publicações, incluindo o "Jameah" ("Sociedade"), primeiro jornal reformista iraniano. Pego de surpresa, como centenas de colegas jornalistas que ficaram desempregados da noite para o dia, mudou-se para Toronto, no Canadá. (...)