O alemão que falava demais
A Gedächtniskirche está de pé com o belo aspecto de quem cai aos pedaços, símbolo da recriação geral da cidade. É um postal de destruição tranqüilo, úmido, tem a calma da vida eterna mesmo com a turistada em volta. Depois das seis os turistas desaparecem, porque a igreja fecha, e recosto nos detritos de guerra dela.
Jörg começa a falar comigo em alemão. Ele deve ter uns 40 anos, é alto, usa uma armação de óculos fabricada pela última vez na década de 70, e faz algumas pausas em seu discurso para apontar alguma coisa na parede da igreja. Penso que ele pode estar tentando me vender uma relíquia de guerra. No Rio de Janeiro, dizem, já houve quem vendesse o Corcovado. Isso foi há muitas décadas, mas vai que Jörg pensa que eu sou otária?
- Aí, quer comprar esse buraco de bala? Autêntico da II Guerra Mundial, baratinho só na minha mão.
Ele continua a falar, me fazendo virar a cabeça para trás e olhar na pilastra em que eu me recostava os buracos de bala autênticos da II Guerra Mundial. Digo pra ele, em inglês, que não falo nada em alemão, null. Digo a Jörg que sou do Brasil, Rio de Janeiro. Ele entende isso, e até comenta alguma coisa também em inglês como resposta. Em seguida, como se o diálogo anterior não tivesse ocorrido, torna a falar muito, muito alemão.
Jörg não se preocupa com a barreira da língua. Tá nem aí pra ela com seus bigodes (ele usa bigodes, pra combinar com os óculos 70's; parece um dos Beastie Boys fantasiados em "Sabotage"). Ele continua falando, me fazendo olhar aqui e ali. Digo uma segunda, terceira vez: "sorry, sir, I don't understand".
Jörg quer me ensinar alemão à força, como o apreendem os imigrantes. Eu só quero ficar quieta na mureta do que restou da igreja, mas o homem adora esta igreja, muito mais do que eu. Pela empolgação que demonstra, parece ser ele o turista.
A essa altura eu já estou de pé ao lado de Jörg, olhando sempre na direção que sua mão aponta enquanto ele despeja toneladas de alemão nos meus ouvidos, perguntando ao final de algumas frases "Ja? Ja?". Eu faço que sim com a cabeça. Ele entende que eu não entendo. Mas quer se comunicar a qualquer custo.
Jörg me faz andar em torno da igreja com ele, apontando janelas em que podemos ver "afrescos, ja?, afrescos". Começo a ver legendas no que ele diz. "Afrescos" ele diz assim mesmo, mas o resto eu vou lendo abaixo dos bigodes, onde ficaria a boca surge uma tarja preta com a tradução em caracteres brancos.
- A construção começou em 1891 e foi até 1895, por ordem do Kaiser Wilhelm II, marcando a unificação da Prússia e em homenagem ao Kaiser Wilhelm I, que era avô do Kaiser Wilhelm II.
- Hmmm...
- Ja?
- I see...
- Vê os afrescos? Algumas coisas eles conseguiram manter exatamente como eram, outras sofreram danos irrecuperáveis. É seguro entrar, no entanto. Chega mais cedo da próxima vez, ela fecha às seis.
Arrisco uma pergunta em inglês sobre uma estrutura de ferro que segura uma parte da igreja de pé. Ele parece entender que falo daquela estrutura, pois aponta para ela, provavelmente seguindo meu olhar em vez das minhas palavras. A explicação que me dá é ininteligível para mim como tudo o mais que me diz, mas dá satisfação ver o entusiasmo de Jörg com uma das coisas quebradas de Berlim que também me entusiasmam.
Animada com a resposta sobre a estrutura de ferro, pergunto em inglês sobre as esculturas colocadas nos fundos da torre da igreja, que certamente são de outro período que não o de sua construção. Foram feitas por volta do 2000, será? Jörg entende e me diz (em alemão, claro), "nein, fim dos 80".
Em quatro semanas de experiência germânica ainda não encontrei outro alemão tão fanático pelo próprio idioma e apaixonado por algum aspecto da cidade quanto Jörg e sua igreja. A princípio pensei que trabalhasse na lojinha de souvenir em frente, mas não. Ele ainda me levou até a porta do metrô, o que alguém em horário de trabalho não poderia fazer.
- Você tem que voltar outro dia pra ver os afrescos.
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