Piscinão de Treptow, coincidências, banda eva, abominação da escravatura
Colei abaixo deste post a minha coluna da semana passada publicada pela Folha de S. Paulo, porque achei necessário explicar um pouco sobre a minha coleção antes de começar esta entrada aqui. Dito isto, vamos ao item colecionado ontem.
Eu fui parar em Treptow. Eu já tinha ido lá uma noite, num lugar em que a gente tem que tocar uma campainha pra entrar. E não é a residência de alguém. No domingo voltei a Treptow. É um antigo distrito de fronteira, que desde o século 19 tem restaurantezinhos para esse povo não-bronzeado tentar reverter essa situação à beira do Spree, e hoje ainda conta com uma piscina dentro do Rio.
Olha, é tudo mentira: não tá calor não. Os dois caras que você tá vendo nessa foto são malucos. E em geral todos acham que 10 graus é o suficiente pra se jogar na água se houver uns raios de sol entre as nuvens a cada dez minutos.
O Piscinão de Treptow é parte do império Arena, que inclui boate, barzinhos e casa de show. Muito do que vi a caminho de lá e em torno desses estabelecimentos tem pinta de ruínas. As paredes estão carcomidas, os tijolos expostos, há grafites de todas as épocas pelos muros de prédios que devem estar condenados, e toda vez que passo num beco apertado entre esses prédios eu acho que vou ser soterrada por um bloco de concreto que ameaça cair desde 1989 mas decidirá fazê-lo agora, sobre a minha cabeça.
Essa área de Treptow ainda não perdeu o jeitão DDR: os prédios que não têm cara de que vão cair em cinco segundos são caixas quadradas de cimento aonde mora gente, sim, sem qualquer coisa remotamente bela nelas, a não ser certa nostalgia pela Berlim dividida que podem despertar nos mais sádicos. Há mercados de pulgas que se encontram espalhados aqui e ali em pátios cheios de capim e lama, onde não há mais nada em volta. Cato com um turco uma bíblia em Alemão caindo aos pedaços para levar de presente para alguém, olho em volta e não vejo nem um táxi, nem um ônibus passando. Carrinhos de bebê empoeirados e fileiras de araras cheias de casacos semi-destruídos e centenas de sapatos femininos das décadas de 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90 acumulam-se entre todo o tipo de tralhas que um dia compuseram o velho mundo de Berlim. Aqueles são sapatos das mulheres que sobreviveram, talvez haja ali no meio os pares de alguma judia de pés pequenos, talvez, talvez, e os sapatos masculinos são mais raros de se ver por aqui.
Tive a impressão perfeita de estar no fim do mundo, então, e de repente me deu uma vontade imensa de largar pelo meio este post e voltar lá, agora, onde essa sensação me bata mais forte outra vez, nesta segunda-feira em que nem os mercados de pulgas estarão estacionados por lá, no fim do mundo.
Antes que eu deixe mais uma vez um post pela metade pra ir pra rua, o novo item da coleção de coincidências. Então. Eu tinha ido a Treptow, o fim do mundo. Andava, andava e só via turcos e sapatos e casacos de gente morta e a Bíblia e carrinhos de bebê empoeirados e enferrujados, empilhados etc. Andei até chegar a uma estrada onde passavam carros, na esperança de ver algum táxi disposto a me levar até a estação de metrô de onde eu havia saído horas antes e não fazia mais ideia de como alcançar, depois de oferecer minha cabeça a prêmio sob as marquises do rocambole de concreto condenado em que havia me metido.
Andei e cheguei a algum lugar que se parecia com o recomeço da civilização. Olhei para o meu lado direito antes de atravessar e lá estavam duas pessoas que conheço. Juliana Lugão e Ana Luiza Huppe. Juliana é amiga do Antonio Prata, me entrevistou por email para a Deutsche Welle na primeira semana em que cheguei aqui. E não mora aqui, mas em Bonn. Ana Luiza saiu comigo naquela primeira semana e nunca mais nos cruzamos porque a minha vida aqui é doida. Tenho certeza de que perdi toda a cor na cara ao vê-las. Elas também levaram algum tempo para processar o encontro. Aquele era o fim do mundo e não havíamos marcado nada.
As duas estavam a caminho dos monumentos soviéticos da guerra, que ficam no centro de um parque gigantesco bem ali, onde o mundo que acabou recomeça, depois da avenida em que passam alguns carrinhos e tem até um semáforo. Para comemorar o encontro, troquei os tênis por um par de havaianas que levava na mochila e de havaianas andamos pelo parque entre pedras com frases de Stalin gravadas, cheio de lama da chuva que finalmente dava trégua, e escalamos as escadas do monumento principal, um mausoléu com a estátua de 13 metros de um soldado russo segurando uma criança.
A estátua acima não é a do soldado soviético segurando a criança no memorial da guerra em Treptow. Esta fica próxima ao Marksches Museum. Posto-a porque achamo-la esquisita. Qualquer informação sobre a mesma, escrevam-me. (Com ênclises e mesóclises). Indagados, berlinenses não souberam explicá-la.
- Cara, conheci um pai-de-santo que mora aqui em Berlim há mais de dez anos.
- Ele faz trabalho?
- Sei lá, né? Deve fazer pra ele mesmo, pra alemão num rola.
Sentamos pra fumar um cigarro aos pés da estátua e dar risada dos hábitos da cidade que não compreendemos, chamando a atenção dos turistas russos que levavam flores ao mausoléu. Um deles até arriscou um "Tudo bem?" ao saber que éramos brasileiras.
"Entrance 0800". Quer dizer a mesma coisa que no Brasil, mas duvido que os alemães saibam a conotação que "0800" tem para nós: entrada grátis.
Andamos andamos e andamos em cima da lama e das flores brancas que se acumulam no chão mais que a grama, as Havaianas imundas. Na plataforma da estação de trem em Treptow (tenho certeza de que não foi a mesma na qual cheguei), as portas de um vagão se abrem e dele salta um quarto brasileiro com quem nada tínha mos marcado, e se junta a nós ao acaso. Estudante de História e Cinema que hoje faz pesquisa - com bolsa - em Berlim, ele acoplaria ao grupo, mais adiante, uma italiana e outro brasileiro. O casal, também encontrado ao acaso, vende pipas no Mauer Park, em frente a outro flohmarkt, onde passeamos entre mais carrinhos de bebês, bolsas inspiradas nas que eram usadas pelos agentes da DDR enquanto o Mauer existia - o Mauer ainda existe, "a mentalidade", me repetem - mais sapatos antigos, mais barraquinhas de salsicha e doner kebab e café, quinquilharias da Guerra Fria, casacos de soldados, broches da juventude DDR, livros por um euro, bicicletas usadas, óculos de sol para quem quase não tem sol, roupas de tirolesa, lama, pipas, bicicletas sem banco e gente se equilibrando sobre pedras com elas, criancinhas que aprendem a andar de bicicleta sem rodinha aos três anos de idade (e têm prova de bicicleta no colégio pra tirar carteira de ciclista), pré-adolescentes bebendo cerveja do gargalo, adultos bebendo cerveja do gargalo, moças magérrimas bebendo cerveja do gargalo, salsicha salsicha salsicha, monumentos, punks, cachorros de punks, crianças e pipas.
Aí eu já não estava mais me surpreendendo tanto com encontros sucessivos não-planejados.
Almoçamos num tailandês bom e barato e pedi uma cerveja chinesa em solidariedade ao Prata. Descobri que, se ele gosta de cerva e prestigia por lá o produto local, deve estar sofrendo um bocado. Dali visitamos o apartamento da Ana em Prenzlauer Berg, num prédio espetacular com quintal para dar altas festinhas que nunca acontecerão porque alemães, apesar de farofeiros, só o são em parques, onde piquinicam sempre que sai um solzinho, com direito a churrasqueira e muita birita, mas não permitem festinhas na área comum dos seus prédios centenários. Segumos então para a Weinerei, um lugar com várias saletas em que as pessoas se sentam em sofás que só podem ter saído dos flohmarkts ou em torno de mesinhas redondas também com cara de coisa muito velha, as cortinas são gravatas, a música fica entre a bossa nova e o jazz e você mesmo serve seu vinho, pagando o que bem entender ao final da noite. Isto: você enche a cara e decide quanto paga no final. Aqui o sistema funciona que é uma beleza, pois as pessoas costumam pagar o justo.
Pouco depois que um cara passou entre os sofazinhos vendendo space-cake, decidimos ir pro evento 0800 do pai-de-santo.
Fico louca com essas coisas: esta semana furei com algumas pessoas com quem devia ter encontrado mas não consegui ir vê-las porque estava rodando a cidade e fazendo anotações. Encontrei Juliana e a Ana por acaso. O dia foi rico e me lembrou que a gente pode não escrever algo sozinho. É preciso às vezes ter gente pra chuchu a nossa volta. É o "Encontro" de que falava o Hélio Pellegrino e Fernando Sabino. O "Encontro" não é o acaso, não se define por ele; o "Encontro" está "no outro".
E coincidências me deixam encasquetada.
Abominação da brancura
Agora chega a parte em que eu conto a reação dos alemães quando digo que sou brasileira.
Na volta pra casa, éramos só eu e um punk num vagão de trem. O sujeito entrou depois de mim e fez questão de se sentar no banco a minha frente. Eu sorri, como sempre tenho feito agora. Muito tarde na vida descobri que isso é melhor que amarrar a cara quando o eye contact é inevitável e a figura nos encara mais a feio que a bonito. Ele tava meio encardido. Unhas grandes e sujas, roupas não pretas mas já cinzas de tão velhas e imundas, de quem escapou de uma bomba, e um resto de tinta vermelha saindo do cabelo na parte do cocuruto. Não, sangue? Mas dava pra ver por baixo daquela imundície toda um cara bonito. Lavô tá novo, mas daria um trabalho danado. Papo vai, papo vem, ele quer saber de onde venho. Já me preparo para a "cara de abismo" que o João detectou em Tóquio. Aqui também fazem muito.
- Brasil.
- BRASIL?!
- É, Brasil. Rio de Janeiro, samba...
- Mas você é branca.
Também não é a primeira vez que ouço isso.
- Eu sou punk. Pra mim não interessa de onde as pessoas vêm. Eu sou metade alemão, só. Meu pai era do Cazaquistão. Sabe, eu não sou nazi. Mas eu acho que os judeus estão fazendo muita merda no mundo. Os judeus e os Estados Unidos.
Tem coisa que nem lavando muito fica nova. Ou boa.
Eu fui parar em Treptow. Eu já tinha ido lá uma noite, num lugar em que a gente tem que tocar uma campainha pra entrar. E não é a residência de alguém. No domingo voltei a Treptow. É um antigo distrito de fronteira, que desde o século 19 tem restaurantezinhos para esse povo não-bronzeado tentar reverter essa situação à beira do Spree, e hoje ainda conta com uma piscina dentro do Rio.
Olha, é tudo mentira: não tá calor não. Os dois caras que você tá vendo nessa foto são malucos. E em geral todos acham que 10 graus é o suficiente pra se jogar na água se houver uns raios de sol entre as nuvens a cada dez minutos.
O Piscinão de Treptow é parte do império Arena, que inclui boate, barzinhos e casa de show. Muito do que vi a caminho de lá e em torno desses estabelecimentos tem pinta de ruínas. As paredes estão carcomidas, os tijolos expostos, há grafites de todas as épocas pelos muros de prédios que devem estar condenados, e toda vez que passo num beco apertado entre esses prédios eu acho que vou ser soterrada por um bloco de concreto que ameaça cair desde 1989 mas decidirá fazê-lo agora, sobre a minha cabeça.
Essa área de Treptow ainda não perdeu o jeitão DDR: os prédios que não têm cara de que vão cair em cinco segundos são caixas quadradas de cimento aonde mora gente, sim, sem qualquer coisa remotamente bela nelas, a não ser certa nostalgia pela Berlim dividida que podem despertar nos mais sádicos. Há mercados de pulgas que se encontram espalhados aqui e ali em pátios cheios de capim e lama, onde não há mais nada em volta. Cato com um turco uma bíblia em Alemão caindo aos pedaços para levar de presente para alguém, olho em volta e não vejo nem um táxi, nem um ônibus passando. Carrinhos de bebê empoeirados e fileiras de araras cheias de casacos semi-destruídos e centenas de sapatos femininos das décadas de 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90 acumulam-se entre todo o tipo de tralhas que um dia compuseram o velho mundo de Berlim. Aqueles são sapatos das mulheres que sobreviveram, talvez haja ali no meio os pares de alguma judia de pés pequenos, talvez, talvez, e os sapatos masculinos são mais raros de se ver por aqui.
Tive a impressão perfeita de estar no fim do mundo, então, e de repente me deu uma vontade imensa de largar pelo meio este post e voltar lá, agora, onde essa sensação me bata mais forte outra vez, nesta segunda-feira em que nem os mercados de pulgas estarão estacionados por lá, no fim do mundo.
Antes que eu deixe mais uma vez um post pela metade pra ir pra rua, o novo item da coleção de coincidências. Então. Eu tinha ido a Treptow, o fim do mundo. Andava, andava e só via turcos e sapatos e casacos de gente morta e a Bíblia e carrinhos de bebê empoeirados e enferrujados, empilhados etc. Andei até chegar a uma estrada onde passavam carros, na esperança de ver algum táxi disposto a me levar até a estação de metrô de onde eu havia saído horas antes e não fazia mais ideia de como alcançar, depois de oferecer minha cabeça a prêmio sob as marquises do rocambole de concreto condenado em que havia me metido.
Andei e cheguei a algum lugar que se parecia com o recomeço da civilização. Olhei para o meu lado direito antes de atravessar e lá estavam duas pessoas que conheço. Juliana Lugão e Ana Luiza Huppe. Juliana é amiga do Antonio Prata, me entrevistou por email para a Deutsche Welle na primeira semana em que cheguei aqui. E não mora aqui, mas em Bonn. Ana Luiza saiu comigo naquela primeira semana e nunca mais nos cruzamos porque a minha vida aqui é doida. Tenho certeza de que perdi toda a cor na cara ao vê-las. Elas também levaram algum tempo para processar o encontro. Aquele era o fim do mundo e não havíamos marcado nada.
As duas estavam a caminho dos monumentos soviéticos da guerra, que ficam no centro de um parque gigantesco bem ali, onde o mundo que acabou recomeça, depois da avenida em que passam alguns carrinhos e tem até um semáforo. Para comemorar o encontro, troquei os tênis por um par de havaianas que levava na mochila e de havaianas andamos pelo parque entre pedras com frases de Stalin gravadas, cheio de lama da chuva que finalmente dava trégua, e escalamos as escadas do monumento principal, um mausoléu com a estátua de 13 metros de um soldado russo segurando uma criança.
A estátua acima não é a do soldado soviético segurando a criança no memorial da guerra em Treptow. Esta fica próxima ao Marksches Museum. Posto-a porque achamo-la esquisita. Qualquer informação sobre a mesma, escrevam-me. (Com ênclises e mesóclises). Indagados, berlinenses não souberam explicá-la.
- Cara, conheci um pai-de-santo que mora aqui em Berlim há mais de dez anos.
- Ele faz trabalho?
- Sei lá, né? Deve fazer pra ele mesmo, pra alemão num rola.
Sentamos pra fumar um cigarro aos pés da estátua e dar risada dos hábitos da cidade que não compreendemos, chamando a atenção dos turistas russos que levavam flores ao mausoléu. Um deles até arriscou um "Tudo bem?" ao saber que éramos brasileiras.
O celular da Ana apita e ela lê em voz alta a mensagem:
"ABOMINAÇÃO DA ESCRAVATURA - CELEBRAÇÃO BOLADÃO
13 de Maio 19h ACUD (Mitte)
Brasil Funk Soul Jazz Samba
Special guest: PRETO VELHO e Renato Pantera
Entrance 0800"
A mensagem era do pai-de-santo de que a Ana tinha acabado de falar.
"Celebração boladão", eu arriscaria dizer que é algo como um "celebramos o fim da escravatura mas com ressalvas, pois sabemos que a coisa nunca acabou de fato".
"ABOMINAÇÃO DA ESCRAVATURA - CELEBRAÇÃO BOLADÃO
13 de Maio 19h ACUD (Mitte)
Brasil Funk Soul Jazz Samba
Special guest: PRETO VELHO e Renato Pantera
Entrance 0800"
A mensagem era do pai-de-santo de que a Ana tinha acabado de falar.
"Celebração boladão", eu arriscaria dizer que é algo como um "celebramos o fim da escravatura mas com ressalvas, pois sabemos que a coisa nunca acabou de fato".
"Entrance 0800". Quer dizer a mesma coisa que no Brasil, mas duvido que os alemães saibam a conotação que "0800" tem para nós: entrada grátis.
Andamos andamos e andamos em cima da lama e das flores brancas que se acumulam no chão mais que a grama, as Havaianas imundas. Na plataforma da estação de trem em Treptow (tenho certeza de que não foi a mesma na qual cheguei), as portas de um vagão se abrem e dele salta um quarto brasileiro com quem nada tínha mos marcado, e se junta a nós ao acaso. Estudante de História e Cinema que hoje faz pesquisa - com bolsa - em Berlim, ele acoplaria ao grupo, mais adiante, uma italiana e outro brasileiro. O casal, também encontrado ao acaso, vende pipas no Mauer Park, em frente a outro flohmarkt, onde passeamos entre mais carrinhos de bebês, bolsas inspiradas nas que eram usadas pelos agentes da DDR enquanto o Mauer existia - o Mauer ainda existe, "a mentalidade", me repetem - mais sapatos antigos, mais barraquinhas de salsicha e doner kebab e café, quinquilharias da Guerra Fria, casacos de soldados, broches da juventude DDR, livros por um euro, bicicletas usadas, óculos de sol para quem quase não tem sol, roupas de tirolesa, lama, pipas, bicicletas sem banco e gente se equilibrando sobre pedras com elas, criancinhas que aprendem a andar de bicicleta sem rodinha aos três anos de idade (e têm prova de bicicleta no colégio pra tirar carteira de ciclista), pré-adolescentes bebendo cerveja do gargalo, adultos bebendo cerveja do gargalo, moças magérrimas bebendo cerveja do gargalo, salsicha salsicha salsicha, monumentos, punks, cachorros de punks, crianças e pipas.
Aí eu já não estava mais me surpreendendo tanto com encontros sucessivos não-planejados.
Almoçamos num tailandês bom e barato e pedi uma cerveja chinesa em solidariedade ao Prata. Descobri que, se ele gosta de cerva e prestigia por lá o produto local, deve estar sofrendo um bocado. Dali visitamos o apartamento da Ana em Prenzlauer Berg, num prédio espetacular com quintal para dar altas festinhas que nunca acontecerão porque alemães, apesar de farofeiros, só o são em parques, onde piquinicam sempre que sai um solzinho, com direito a churrasqueira e muita birita, mas não permitem festinhas na área comum dos seus prédios centenários. Segumos então para a Weinerei, um lugar com várias saletas em que as pessoas se sentam em sofás que só podem ter saído dos flohmarkts ou em torno de mesinhas redondas também com cara de coisa muito velha, as cortinas são gravatas, a música fica entre a bossa nova e o jazz e você mesmo serve seu vinho, pagando o que bem entender ao final da noite. Isto: você enche a cara e decide quanto paga no final. Aqui o sistema funciona que é uma beleza, pois as pessoas costumam pagar o justo.
Pouco depois que um cara passou entre os sofazinhos vendendo space-cake, decidimos ir pro evento 0800 do pai-de-santo.
Fico louca com essas coisas: esta semana furei com algumas pessoas com quem devia ter encontrado mas não consegui ir vê-las porque estava rodando a cidade e fazendo anotações. Encontrei Juliana e a Ana por acaso. O dia foi rico e me lembrou que a gente pode não escrever algo sozinho. É preciso às vezes ter gente pra chuchu a nossa volta. É o "Encontro" de que falava o Hélio Pellegrino e Fernando Sabino. O "Encontro" não é o acaso, não se define por ele; o "Encontro" está "no outro".
E coincidências me deixam encasquetada.
Abominação da brancura
Agora chega a parte em que eu conto a reação dos alemães quando digo que sou brasileira.
Na volta pra casa, éramos só eu e um punk num vagão de trem. O sujeito entrou depois de mim e fez questão de se sentar no banco a minha frente. Eu sorri, como sempre tenho feito agora. Muito tarde na vida descobri que isso é melhor que amarrar a cara quando o eye contact é inevitável e a figura nos encara mais a feio que a bonito. Ele tava meio encardido. Unhas grandes e sujas, roupas não pretas mas já cinzas de tão velhas e imundas, de quem escapou de uma bomba, e um resto de tinta vermelha saindo do cabelo na parte do cocuruto. Não, sangue? Mas dava pra ver por baixo daquela imundície toda um cara bonito. Lavô tá novo, mas daria um trabalho danado. Papo vai, papo vem, ele quer saber de onde venho. Já me preparo para a "cara de abismo" que o João detectou em Tóquio. Aqui também fazem muito.
- Brasil.
- BRASIL?!
- É, Brasil. Rio de Janeiro, samba...
- Mas você é branca.
Também não é a primeira vez que ouço isso.
- Eu sou punk. Pra mim não interessa de onde as pessoas vêm. Eu sou metade alemão, só. Meu pai era do Cazaquistão. Sabe, eu não sou nazi. Mas eu acho que os judeus estão fazendo muita merda no mundo. Os judeus e os Estados Unidos.
Tem coisa que nem lavando muito fica nova. Ou boa.
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