Luz e temperatura
Meus cadernos estão cheios, em comparação o blog me parece vazio. Mas deve ser assim mesmo.
***
Quando o diretor que faz o documentário do projeto esteve por aqui para filmar, na semana passada, fomos direto a um clube, que tinha sido minha primeira descoberta na vida noturna da cidade. E até agora permanece a melhor. Apresentei a ele o "chá (batizado) dançante" do Cafe Fatal com o entusiasmo que o lugar me desperta mas avisei: tô velha pra esse negócio de casa noturna. Já desde os 22, quando parei de sair muito à noite. Mas em Berlim as coisas têm que ser diferentes, são os berlinenses que mandam; sem noite, perderia uma porção fundamental da vida dessas pessoas. Mais fundamental que a noite do Rio para o carioca.
No Rio, se não vamos à Lapa por qualquer motivo, existe a praia para compensar os encontros perdidos da noite anterior. Aqui, se eles não vão às casas noturnas... "social", só no verão seguinte. Vida controlada pela luz e pela temperatura, como em tantos outros cantos do mundo, mas com algumas características peculiares.
Detalhe de "Sommer", verão representado nas Crônicas de Augsburg, de Jörg Breu (1475-1537), no museu histórico alemão. Igualzinho a hoje.
Durante o inverno toda a vida social que os mais jovens têm aqui está concentrada em boates e bares: sair de casa, entrar no táxi, sair do táxi direto pro clube. No verão (isto que vivemos agora e que ainda não consegui levar a sério como "estação quente"), mesmo com o vento muito frio, todos ganham a opção dos bancos de madeira dos cafés, enfileirados pelas calçadas; ganham as "praias", locais com areia escura, cadeiras reclináveis e drinks servidos em longos copos com guarda-chuvas coloridos; vão para a beira do rio Spree, aonde tomam sol lendo o Berlin Morgenpost; como já vimos aqui no blog, até uma piscina tony nos fundos de um restaurante serve. Mas nada disso enfraquece o hábito de se meterem em espeluncas subterrâneas, ou que ocupam terraços inteiros, ou que funcionam em galpões de antigas fábricas desativadas - quanto menos comum o local, mais cheio estará. Assim, não me resta alternativa senão tomar meu cálcio e me meter nas mesmas espeluncas.
SILÊNCIO
Depois de muitos dias falando mais comigo mesma do que arriscando um "bitte" ou um "guten tag", entrar em contato com um brasileiro novamente me deu certo alívio. Especialmente por causa da paranóia com o silêncio.
Happy hour na farmácia: compre um Rivotril e leve três
Tive certeza de que não estava 100% doida quando o diretor do filme confessou que percebia o tal do silêncio. É um silêncio pesado. Estávamos no Hackescher Market lotado, e tudo que ouvimos lá foi um zumbido que para mim já é característico, zumbido baixo de vozes baixas, quase saias roçando meias-calças. O roçar da pouca conversa baixa, ou do nada. O S-Bahn que passa pelo meio do prédio de tijolos vermelhos. Um solitário cachorro de punk, Paulinho Mendes Campos, que late ao meio-dia em Pankow e pode ser ouvido no Hackescher Markt. O brasileiro também ouviu o silêncio, gravou o silêncio.
A maioria dos filmes que fiz com a minha câmera registram solas de sapatos batendo nas calçadas, um único carro que passa ao longe numa avenida do Mitte que, fosse Berlim uma cidade comum, estaria engarrafada na hora do rush. Não parece haver rush. A única coisa rápida em Berlim é o S-Bahn. Tudo o mais é lentidão. Ruídos de eterno feriado. E os que curam as ressacas de quarta-feira em horário comercial na quinta não me deixam mentir.
De dia ando pelas ruas à procura de gente, e sempre penso que há pouca. Dou um significado próprio ao caso, encasqueto, chuto: essas pessoas vivem é à noite, mesmo quando o sol começa a se firmar na primeira semana de Maio. Estão habituadas a ter as boates como epicentro de suas vidas durante boa parte do ano, enquanto é tão frio que não há outra possibilidade senão se divertir fechado numa caixa com aquecimento central. Agora, há movimento nos cafés. Mas sempre me parece pouco, mesmo nas ruas de maior movimento.
Toda vez que escuto meus passos na calçada ou olho para uma rua em que os semáforos parecem servir apenas a duas bicicletas que a cruzam lentamente, tenho o mesmo pensamento. Muitos cenários espetaculares, mas faltam atores.
Falta gente em Berlim
Não sei se dará certo a longo prazo, mas incentiva-se (investimento do governo) a turma aqui a parir para dar uma equilibrada na pirâmide e, quem sabe, impedir que a cidade se torne inteira Nova Istambul.
"A Alemanha seria muito melhor sem os alemães, rárárá!".
O motorista de táxi que me leva a um mercado turco ri muito da própria piada e verifica no retrovisor se conseguiu ao menos arrancar um sorrisinho cúmplice da brasileira. Deve ter encontrado no espelho olhos arregalados. Estou me lembrando de outra motorista de táxi, a alemã que falava português. Este motorista é turco, nada há de espetacular em que faça piada com os hábitos dos alemães, tão diferentes dos seus. Mas a alemã que malhou os alemães durante todo um trajeto de dez minutos no táxi ainda me intriga, pois aqui não vinga a síndrome de vira-latas que leva o brasileiro a se esculachar constantemente. De acordo com esses dois - um turco e uma prata-da-casa - os alemães são uns chatos.
Nas boates, por outro lado, verfico que se esbaldam. De uma maneira que os brasileiros não estamos habituados a ver. Arremessam na pista coreografias que jamais imaginei possíveis, com pinta de treinamento gravitacional da Nasa. Vão do "robô" (banido em qualquer outro lugar do mundo desde o final dos anos 80) até pulinhos de balé clássico ao som de funk carioca, como vi na festa Berlin Hilton. Vale homem barbado de mini-saia e mulher de melindrosa. Toda noite é festa à fantasia. Mas fora de uma pista de dança, boa parte deles continua se esforçando a corresponder ao clichê que os qualifica como ranzinzas.
Enquanto isso os turcos gargalham nas calçadas, povoam e atraem movimento para áreas da cidade que não existiriam sem o seu comércio. Os alemães talvez não percebam o quanto estão apaixonados pela cultura do povo que fincou a Little Istambul em Kreuzberg. Não notam que é cultura o durun dönner, o dönner kebab com que vêm substituindo todos os dias suas salsichas: engolem e digerem tudo com chá preto importado da Turquia. Enquanto tomam o chá, o turco puxa conversa detrás do balcão. Quer saber se estava tudo bom, se a rádio está agradando, se a música não está muito alta. A música da rádio turca, que o alemão vai ouvindo e quando percebe, já reconhece. Som bom para bater o pezinho. E logo estoura mais uma festa de música eletrônica turca para concorrer com a Gayhane do clube So36 e este e outros alemães vão estar lá, dançando essa música e gostando de algo estrangeiro - que já não é mais tão estrangeiro assim.
Globalização
Tomo o trem ao sair do mercado. Joseph Roth estava certo ao escrever que passamos a conhecer essas pessoas cujas casas invadimos quando andamos de S-Bahn. Os trens passam tão rentes às janelas que seus móveis se tornam familiares, alguns rostos reconhecidos. Repetem-se os turcos reunidos em torno de uma mesa, jogando cartas.
É a última coisa que penso antes de começar a cochilar no S-Bahn. Sei disso porque anotei na caderneta que tenho nas mãos quando acordo com alguém me pegando pelo braço. Acordo e dou de cara com um homem que me cola a carteirinha de fiscal de metrô nos meus olhos: "Ticket!" Demoro a me indignar (silenciosamente), a entender que o toque impróprio - é impróprio porque foi quase um sacode - é justificado aqui pela autoridade investida no homem.
Esses fiscais andam à paisana nos metrôs e trens para surpreender gente sem bilhete ou que tenha se esquecido de validá-lo (é necessário não apenas comprar, mas colocar o papel na maquininha que marca a hora da compra do bilhete e fica ao lado da outra, que os dispensa). Concordo que a batida seja necessária; mas a abordagem Stasi poderia ser abolida. Vou colocar isso na caixa de sugestões da estação de trem. Tenho certeza de que existe uma.
Mais sobre esse assanhamento de berlinenses com a noite amanhã. Falarei do ladrão de Damasco, da gangue de passarinhos, do alemão que falava demais, da Berlin Hilton e do Cafe Fatal.
O post ficou imenso e eu só estava introduzindo a conversa. Mas como já expliquei lá no começo do texto, tô velha e esse negócio de sair dia e noite, todos os dias... zzzzzzzzzzz. Não me desperte sacudindo meus braços.
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Quando o diretor que faz o documentário do projeto esteve por aqui para filmar, na semana passada, fomos direto a um clube, que tinha sido minha primeira descoberta na vida noturna da cidade. E até agora permanece a melhor. Apresentei a ele o "chá (batizado) dançante" do Cafe Fatal com o entusiasmo que o lugar me desperta mas avisei: tô velha pra esse negócio de casa noturna. Já desde os 22, quando parei de sair muito à noite. Mas em Berlim as coisas têm que ser diferentes, são os berlinenses que mandam; sem noite, perderia uma porção fundamental da vida dessas pessoas. Mais fundamental que a noite do Rio para o carioca.
No Rio, se não vamos à Lapa por qualquer motivo, existe a praia para compensar os encontros perdidos da noite anterior. Aqui, se eles não vão às casas noturnas... "social", só no verão seguinte. Vida controlada pela luz e pela temperatura, como em tantos outros cantos do mundo, mas com algumas características peculiares.
Detalhe de "Sommer", verão representado nas Crônicas de Augsburg, de Jörg Breu (1475-1537), no museu histórico alemão. Igualzinho a hoje.
Durante o inverno toda a vida social que os mais jovens têm aqui está concentrada em boates e bares: sair de casa, entrar no táxi, sair do táxi direto pro clube. No verão (isto que vivemos agora e que ainda não consegui levar a sério como "estação quente"), mesmo com o vento muito frio, todos ganham a opção dos bancos de madeira dos cafés, enfileirados pelas calçadas; ganham as "praias", locais com areia escura, cadeiras reclináveis e drinks servidos em longos copos com guarda-chuvas coloridos; vão para a beira do rio Spree, aonde tomam sol lendo o Berlin Morgenpost; como já vimos aqui no blog, até uma piscina tony nos fundos de um restaurante serve. Mas nada disso enfraquece o hábito de se meterem em espeluncas subterrâneas, ou que ocupam terraços inteiros, ou que funcionam em galpões de antigas fábricas desativadas - quanto menos comum o local, mais cheio estará. Assim, não me resta alternativa senão tomar meu cálcio e me meter nas mesmas espeluncas.
SILÊNCIO
Depois de muitos dias falando mais comigo mesma do que arriscando um "bitte" ou um "guten tag", entrar em contato com um brasileiro novamente me deu certo alívio. Especialmente por causa da paranóia com o silêncio.
Happy hour na farmácia: compre um Rivotril e leve três
Tive certeza de que não estava 100% doida quando o diretor do filme confessou que percebia o tal do silêncio. É um silêncio pesado. Estávamos no Hackescher Market lotado, e tudo que ouvimos lá foi um zumbido que para mim já é característico, zumbido baixo de vozes baixas, quase saias roçando meias-calças. O roçar da pouca conversa baixa, ou do nada. O S-Bahn que passa pelo meio do prédio de tijolos vermelhos. Um solitário cachorro de punk, Paulinho Mendes Campos, que late ao meio-dia em Pankow e pode ser ouvido no Hackescher Markt. O brasileiro também ouviu o silêncio, gravou o silêncio.
A maioria dos filmes que fiz com a minha câmera registram solas de sapatos batendo nas calçadas, um único carro que passa ao longe numa avenida do Mitte que, fosse Berlim uma cidade comum, estaria engarrafada na hora do rush. Não parece haver rush. A única coisa rápida em Berlim é o S-Bahn. Tudo o mais é lentidão. Ruídos de eterno feriado. E os que curam as ressacas de quarta-feira em horário comercial na quinta não me deixam mentir.
De dia ando pelas ruas à procura de gente, e sempre penso que há pouca. Dou um significado próprio ao caso, encasqueto, chuto: essas pessoas vivem é à noite, mesmo quando o sol começa a se firmar na primeira semana de Maio. Estão habituadas a ter as boates como epicentro de suas vidas durante boa parte do ano, enquanto é tão frio que não há outra possibilidade senão se divertir fechado numa caixa com aquecimento central. Agora, há movimento nos cafés. Mas sempre me parece pouco, mesmo nas ruas de maior movimento.
Toda vez que escuto meus passos na calçada ou olho para uma rua em que os semáforos parecem servir apenas a duas bicicletas que a cruzam lentamente, tenho o mesmo pensamento. Muitos cenários espetaculares, mas faltam atores.
Falta gente em Berlim
Não sei se dará certo a longo prazo, mas incentiva-se (investimento do governo) a turma aqui a parir para dar uma equilibrada na pirâmide e, quem sabe, impedir que a cidade se torne inteira Nova Istambul.
"A Alemanha seria muito melhor sem os alemães, rárárá!".
O motorista de táxi que me leva a um mercado turco ri muito da própria piada e verifica no retrovisor se conseguiu ao menos arrancar um sorrisinho cúmplice da brasileira. Deve ter encontrado no espelho olhos arregalados. Estou me lembrando de outra motorista de táxi, a alemã que falava português. Este motorista é turco, nada há de espetacular em que faça piada com os hábitos dos alemães, tão diferentes dos seus. Mas a alemã que malhou os alemães durante todo um trajeto de dez minutos no táxi ainda me intriga, pois aqui não vinga a síndrome de vira-latas que leva o brasileiro a se esculachar constantemente. De acordo com esses dois - um turco e uma prata-da-casa - os alemães são uns chatos.
Nas boates, por outro lado, verfico que se esbaldam. De uma maneira que os brasileiros não estamos habituados a ver. Arremessam na pista coreografias que jamais imaginei possíveis, com pinta de treinamento gravitacional da Nasa. Vão do "robô" (banido em qualquer outro lugar do mundo desde o final dos anos 80) até pulinhos de balé clássico ao som de funk carioca, como vi na festa Berlin Hilton. Vale homem barbado de mini-saia e mulher de melindrosa. Toda noite é festa à fantasia. Mas fora de uma pista de dança, boa parte deles continua se esforçando a corresponder ao clichê que os qualifica como ranzinzas.
Enquanto isso os turcos gargalham nas calçadas, povoam e atraem movimento para áreas da cidade que não existiriam sem o seu comércio. Os alemães talvez não percebam o quanto estão apaixonados pela cultura do povo que fincou a Little Istambul em Kreuzberg. Não notam que é cultura o durun dönner, o dönner kebab com que vêm substituindo todos os dias suas salsichas: engolem e digerem tudo com chá preto importado da Turquia. Enquanto tomam o chá, o turco puxa conversa detrás do balcão. Quer saber se estava tudo bom, se a rádio está agradando, se a música não está muito alta. A música da rádio turca, que o alemão vai ouvindo e quando percebe, já reconhece. Som bom para bater o pezinho. E logo estoura mais uma festa de música eletrônica turca para concorrer com a Gayhane do clube So36 e este e outros alemães vão estar lá, dançando essa música e gostando de algo estrangeiro - que já não é mais tão estrangeiro assim.
Globalização
Tomo o trem ao sair do mercado. Joseph Roth estava certo ao escrever que passamos a conhecer essas pessoas cujas casas invadimos quando andamos de S-Bahn. Os trens passam tão rentes às janelas que seus móveis se tornam familiares, alguns rostos reconhecidos. Repetem-se os turcos reunidos em torno de uma mesa, jogando cartas.
É a última coisa que penso antes de começar a cochilar no S-Bahn. Sei disso porque anotei na caderneta que tenho nas mãos quando acordo com alguém me pegando pelo braço. Acordo e dou de cara com um homem que me cola a carteirinha de fiscal de metrô nos meus olhos: "Ticket!" Demoro a me indignar (silenciosamente), a entender que o toque impróprio - é impróprio porque foi quase um sacode - é justificado aqui pela autoridade investida no homem.
Esses fiscais andam à paisana nos metrôs e trens para surpreender gente sem bilhete ou que tenha se esquecido de validá-lo (é necessário não apenas comprar, mas colocar o papel na maquininha que marca a hora da compra do bilhete e fica ao lado da outra, que os dispensa). Concordo que a batida seja necessária; mas a abordagem Stasi poderia ser abolida. Vou colocar isso na caixa de sugestões da estação de trem. Tenho certeza de que existe uma.
Mais sobre esse assanhamento de berlinenses com a noite amanhã. Falarei do ladrão de Damasco, da gangue de passarinhos, do alemão que falava demais, da Berlin Hilton e do Cafe Fatal.
O post ficou imenso e eu só estava introduzindo a conversa. Mas como já expliquei lá no começo do texto, tô velha e esse negócio de sair dia e noite, todos os dias... zzzzzzzzzzz. Não me desperte sacudindo meus braços.
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